Blog do Inédito

A ética e o auxílio emergencial
12/Mar/21autor: Emerson Dias
A ética e o auxílio emergencial

“A ética é um valor fundamental, que deve ser cultivado não apenas nas decisões da instituição, mas também dos seus colaboradores.”

Foi com este texto que o Itaú, maior banco privado brasileiro, justificou a demissão de 50 funcionários que em 2020 receberam, indevidamente, o auxílio emergencial oferecido como alívio temporário durante a pandemia da COVID19.

Afinal, citando parte de seu código de ética: “satisfazer interesses particulares em detrimento do bem comum é inaceitável”.

Tenho dito que a ética, assim como a democracia, que inclui a diversidade em todos os sentidos, são ideais de mundo, não são coisas concretas e plenas de existência que enxergamos todos os dias, como é a luz do sol, que a gente vê diariamente.

Estes conceitos são uma luta diária para se chegar um dia, talvez, em sua plenitude, e tem dias que a gente procura e não vê. Só que a gente precisa todos os dias lutar por eles, para que não haja retrocessos daquilo que ontem, a gente caminhou um pouquinho apenas, pois retrocessos insistem em aparecer a todo instante.

Neste sentido, a Lei Federal 12.846 de 2013 (Lei Anticorrupção) é um avanço para o mundo empresarial, o desrespeito a ela e a falta de punição, um retrocesso.

Mas será que a lei por si só basta?

“Se a pessoa puder mentir, trapacear e roubar, e nunca se pega, por que deveria ser honesta?”

Este foi o desafio que Glaucon, irmão de Platão, nos lançou há 2 mil anos e ainda hoje é o grande desafio da ética empresarial.

Dados de pesquisa internacional revelam que as maiores fraudes, em valor financeiro, são praticadas por gerentes, diretores e sócios, e as justificativas mais dadas são: viverem além dos próprios meios e alegarem dificuldades financeiras.

São os indivíduos que construíram um status social que não pode ser mantido apenas com os ganhos regulares (salários, bônus, etc) e, portanto, precisam de uma renda extra as vezes mesmo que por seu próprio descontrole financeiro.

E fraude é qualquer ato ardiloso, enganoso, de má-fé, com o intuito de lesar ou ludibriar outrem, ou de não cumprir determinado dever.

Assim, teria o indivíduo a capacidade de resistir as tentações diante de si, quando essas possibilitam ascensão social, dada a baixa probabilidade de ser pego?

Donald Cressey ainda nos anos 50 compreendeu que fraudes ocorrem quando a oportunidade, a pressão e a racionalização se fazem presentes.

O auxilio emergencial era uma oportunidade, muitas pessoas estavam pressionadas pela falta de recursos financeiros ou pela mera possibilidade de comprar algo com essa graninha. E a racionalização? Bem, essa é o momento em que o indivíduo pondera com sua cabeça, credos, crenças, valores e avalia o risco sobre o que fazer diante da oportunidade e da pressão.

O jornal Valor Econômico, em 03/06/2020 noticiou que um terço das classes A e B brasileira, pediu o auxílio emergencial, a pesquisa indicava que 3,9 milhões de famílias mais ricas tinham algum membro recebendo a ajuda emergencial criada para apoiar pessoas pobres.

Bem, sendo o indivíduo da classe A ou B, ele já nem poderia ser enquadrado para receber o benefício, já que só deveriam ser aprovados os pedidos daqueles que tinham renda individual de até R$ 522,50 mensais ou familiar de até R$ 3.135 (três salários mínimos) valores que estão percebidos no máximo na classe C.

Com isso, temos um argumento para demitir mais do que apenas 50 pessoas Brasil a fora, pois estelionato e falsidade ideológica são crimes.

E o argumento clássico que estas pessoas deram para tal ato, foi pura racionalização, elas alegaram que como sempre pagaram impostos e nunca tiveram nada em troca do governo, aproveitaram para cobrar a fatura.

Ora, o que é isso se não fraude?

E na fraude o indivíduo satisfaz seus interesses particulares em detrimento do bem comum, o que é inaceitável, como disse o banco.

Agora, um pouco de pimenta nesta discussão, será que um escrutínio em todas as declarações de imposto de renda de todos os funcionários, não apenas desta instituição, e sem restrições de posição hierárquicas, também não justificaria outras demissões, pela mesma lógica de apossar-se do dinheiro que não é seu, mas do bem comum?

Deixo aqui um ponto de reflexão, dito pelo dissidente soviético Alexander Solzhenitsyn: “se apenas pessoas malignas em algum lugar insidiosamente cometessem más ações, era necessário apenas separá-las do resto de nós e destruí-las. Mas a linha que divide o bem e o mal corta o coração de todo ser humano. E quem está disposto a destruir um pedaço do seu próprio coração?”

Schopenhauer disse que o estudo do belo, não produziu nenhum artista, assim como o estudo da moral não produziu um homem honesto, mas que em hipótese alguma isso deixasse de ser estudado, é que para ele, o que vale é a prática e não o discurso.

Se não existe sociedade que opere sem a dualidade: punições e recompensas, do mesmo modo, se queremos paz precisamos lutar por justiça.

Assim, não se pode ter seletividade no tipo de má conduta, e por isso mecanismos de Compliance efetivos devem apresentar alguns pilares mestres:

Vontade: ou o famoso “tone at the top”, se a alta liderança não quer de verdade, não adianta, não haverá um programa efetivo. Não à toa o Decreto federal 8.420/15 que regulamenta a lei 12.846/2013, apresenta no artigo. 42, que o comprometimento da alta direção da pessoa jurídica, incluídos os conselhos, deve ser evidenciado pelo apoio visível e inequívoco ao programa.

O segundo elemento é Comunicação, não adianta a liderança querer se ela não contar para a organização que ela quer, e se ela contar que quer, mas na prática mostrar que não quer, não tenha dúvida que em pouco tempo o programa cai em completo descrédito.

Também precisa ter Ferramentas, a organização precisa de um ferramental eficiente de comunicação que chegue a todos. Desde ferramentas de treinamento, que esclareçam tudo que é ou não uma conduta antiética, até um canal de denúncias e de apuração de investigação e da devida punição em casos onde se confirme a conduta indevida.

E, por último, o mais importante, uma Cultura de Compliance, onde se possa ver que maus exemplos são punidos e os bons, reconhecidos. Inclusive, caso necessário, é essencial sair de negócios e desistir de projetos contaminados com corrupção. É impossível ter uma cultura de Compliance, onde as pessoas sabem que o que está afixado nas paredes e telas (valores) não é vivido junto a clientes e fornecedores, muito menos percebido na liderança da organização.

O caso dos 50 demitidos mostra que não há organização imune a corrupção, porque organizações são feitas de pessoas, e pessoas cometem erros, e por isso se faz necessária a intensificação dos mecanismos de controle por parte da sociedade, além dos investimentos em educação, conscientização e toda receita de bolo que já sabemos.

Ética é um processo diário, não um evento único, é a busca por um ideal construído todos os dias em nossos pequenos atos, e precisamos nos perguntar sempre, estou contribuindo com o bem comum ou apenas satisfazendo meus interesses?

Como bem disse Immanuel Kant: “Tudo que não puder contar como fez, não faça”

Este texto saiu no jornal o Estado de SP em 12/03/2021: https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/a-etica-e-o-auxilio-emergencial/

Emerson W. Dias é consultor, escritor, VP de Capital Humano na ANEFAC e leciona temas ligados a ética empresarial, Compliance e comportamento humano na FIPECAFI, FIA Business School e Trevisan.

e-mail: emerson@oineditoviavel.com.br

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